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terça-feira, 28 de setembro de 2021

Reino de Deus e Reino dos Homens: um pequeno esboço de interpretação da relação entre o conceito de laicidade, poder e igreja a partir da história de Nabucodonosor.


O tema da laicidade é muito relevante para os dias atuais. Mas é importante explicar ao leitor quais são os tempos deste escritor. O presente ensaio foi pensado no contexto brasileiro dos primeiros anos da pandemia de Covid-19, mais precisamente no ano de 2021 e, para quem acompanha a política brasileira, o presente texto foi construído em um pano de fundo marcado pela relevância e participação decisiva do eleitorado evangélico nas eleições presidenciais de 2018.

Mesmo antes desse contexto, o eleitorado evangélico já mostrava seu protagonismo no congresso nacional com uma bancada composta por parlamentares que professavam a fé evangélica. Certamente essa presença evangélica no cenário político nacional está relacionada, a vários outros fatores, com o crescimento numérico desse grupo, conforme as últimas pesquisas realizadas pelo IBGE. Já os fins e os objetivos desse grupo na composição política nacional é um ponto de penumbra que foge da presente investigação. Vários são os interesses desse grupo que, diga-se de passagem, não é homogêneo. Desde imunidades e isenções tributárias aos templos das igrejas e, até mesmo, a obtenção de concessão de rádio e televisão, apenas para citarmos a título exemplificativo.

De todo modo, o que me interessa é saber até que ponto a participação de grupos confessos religiosos podem comprometer a laicidade do Estado. Os evangélicos que participam da política brasileira não desconhecem as palavras de Jesus Cristo que é recorrentemente citada em matéria de Estado e religião: "dá a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus" (Mateus, capítulo 22). Entretanto, me parece que os cristãos brasileiros estão mais interessados com os assuntos de César do que com os assuntos do reino de Deus.

Considerando que nosso Estado é Democrático e de Direito (o que quer dizer que somos regidos pelos princípios democráticos de voto popular, universal, periódico e prestação de contas dos governantes), o pluralismo e as divergências de interesses são estimulados, o que justifica o exercício de defesa dos interesses de determinados grupos. Portanto, em tese e, do ponto de vista do arranjo constitucional dos poderes constituídos, nada impede que o grupo religioso se organize e participe de conselhos decisórios e estruturas de poder. Mas é salutar que, numa democracia, o exercício do poder seja constantemente fiscalizado sob permanente vigilância por outros focos de poder (e com muito cuidado, haja vista a experiência nazi-fascista alemã da segunda guerra mundial).

Embora eu admita, em tese, a possibilidade de defesa dos interesses de grupos religiosos, as relações de poder exercidas com base em princípios sacros da religião poderão constituir-se em muros intransponíveis de moralismos, numa clara tensão à diversos outros interesses de segmentos de uma sociedade complexa. O político religioso, mais precisamente o político cristão evangélico, não se contenta em defender os interesses econômicos da instituição da qual participa, pois, na maioria dos seus discursos, a narrativa desses políticos é belicosa, recheada de jargões espiritualizados, inspiradas numa pretensa defesa da fé e justificados na suposta necessidade de apontarem os pecados da sociedade, pois entendem que essa é a responsabilidade que lhes cabem pelo ofício da igreja. Tais discursos entram em choque com interesses e estilos de vida de diversos grupos da sociedade, mas, parece que há uma predileção dos políticos cristão evangélicos em atacar os grupos das pessoas declaradas LGBTQIA+.

O modo de operação dos políticos religiosos, então, desafia um equacionamento das tensões na arena política. De um lado, tem-se a liberdade de pensamento e opinião e, por outro, a garantia da dignidade da pessoa humana a qual pode optar pelo modo de vida que lhe pareça mais feliz e adequado, conforme seu exclusivo julgamento. Nesse ponto, a presença religiosa na política, nesses termos expostos, não agrega à democracia.

Talvez já se adiantando para nos previnir dos problemas que a presença religiosa na política poderiam provocar, o Deus de Israel, conhecido e relevado como “Eu Sou o que Sou” (ou Iavé), nos dá amostra de que o poder político não deveria se imiscuir das questões espirituais, e vice-versa. Não se trata de negar o exercício da cidadania aos cristão, ou proibir que estes elejam políticos que representem os interesses da igreja. A história narrada no Livro de Daniel (antigo testamento), relacionada à figura de Nabucodonosor, rei da Babilônia, que sitiou Jerusalém, pode nos lançar luz acerca dessa problemática.

Nabucodonosor foi responsável por sitiar Jerusalém e, como chefe de Estado que era, semelhante a maioria dos líderes de seu tempo, mantinha uma relação promíscua com os deuses. Poderíamos dizer, talvez, que o rei era um governante tolerante, mas não por bondade explícita, mas por interesses de manutenção do poder.

Por exemplo, no livro de Daniel, no capítulo 2, narra-se o episódio em que Nabucodonosor se viu cercado de vários magos e astrólogos, de diversas religiões distintas, sobre os quais lançou-se a ordem de se interpretar um sonho tido pelo rei babilônico, sob pena de morte de todos esses sábios. O que me chama atenção é que a maioria dos intérpretes do texto bíblico desconsideram o contexto politeísta do rei da Babilônia, o que fica manifesto na relação que Nabucodonosor mantinha com magos de diversas matizes culturais.

Nabucodonosor é um exemplo clássico de líder político que se vale da manipulação da religião para seus propósitos de manutenção do poder. O rei babilônico não era um ser humano temente a quaisquer dos deuses dos magos aos quais constantemente recorria para conselhos e interpretações de sonhos. Pelo contrário, Nabucodonosor era um político pragmático que temia mais pelo exercício do seu poder do que pela fúria dos deuses.

Reforçando a tese ora discutida, é interessante destacar a reação de Nabucodonosor ao ver a manifestação da glória de Deus do refugiado Daniel. Daniel, ao lado de seus amigos Hananias, Misael e Azarias, era jovem dotado de sabedoria e conhecimento, versado na cultura hebraica, da qual Nabucodonosor tinha profundo interesse. Nabucodonosor, ao saber da interpretação do sonho que teve por Daniel, logo reconheceu a grandiosidade do Deus a quem Daniel servia, tendo dito: “certamente o vosso Deus é Deus dos deuses, e o Senhor dos reis e revelador de mistérios”. Logo, devido a essa manifestação de poder, Daniel foi beneficiado nas estruturas políticas babilônicas, tendo àquele nomeado este governador de toda a província.

Porém, Nabucodonosor não era um rei convertido ao Deus de Israel. Seus interesses eram eminentemente políticos. Tanto que, impressionado com a interpretação do sonho – no qual revelava a proeminência do seu reinado – Nabucodonosor deu logo de construir uma estátua em sua homenagem, revelando aqui a noção antiga do poder divino dos reis, tendo baixado decreto determinando que todos os súditos se prostrassem ao som da orquestra, sob pena de morte. Todavia, a narrativa bíblica diz que Daniel e seus amigos, fiéis ao Deus de Israel, não se prostram perante à estátua do Nabucodonosor, razão pela qual foram condenados ao fogo 7 (sete) vezes aumentado da fornalha ardente. Por milagre divino, Daniel e seus amigos foram salvos da fornalha, tendo o próprio rei babilônico presenciado um quarto ser com aspecto de anjo andando com Daniel e seus amigos dentro da fornalha tranquilamente. Naquela hora Nabucodonosor presenciou mais uma demonstração, desta vez ainda mais poderosa, do Deus Iavé.

E, claro, visando resguardar a integridade do seu reinado, Nabucodonosor logo determina um decreto pelo qual todo povo, língua e nação deveria se abster de proferir impróprios e blasfêmias contra Deus de Daniel, do contrário seriam condenados à destruição de suas casas.

Percebe-se que a todo instante Nabucodonosor mantinha estreitas relações de poder com as divindades não por temor reverencial ou devoção sincera, mas por motivos estratégicos e políticos. Interessante pontuar dessa história é o fato curioso narrado no livro do profeta Daniel em que Nabucodonosor se transforma em um animal irracional, vivendo no pasto como se fosse um boi, caindo orvalho sobre seu corpo, tendo-lhe crescido os pelos, assumindo uma forma horripilante de animal-homem. Essa transformação foi demonstração da ira de Deus de Daniel. Nabucodonosor volta ao entendimento depois e, desta vez, reconhece a amplitude da manifestação divina em face dos interesses políticos dos homens. O próprio rei babilônica profere, desta feita, não um decreto com claro intento político, mas um grito de reverência e louvor ao Deus de Israel, reconhecendo que seu reino é sempiterno (Daniel, capítulo 4, versículo 34). Essas palavras não são despretensiosas. Nabucodonosor, um rei pragmático e comprometido com as entranhas de sua exuberância regente, reconhece a existência do exercício de um reino espiritual, divinizado e, sobretudo, atemporal (sempiterno), representado na manifestação milagrosa do Deus de Daniel.

Na minha interpretação, a narrativa de Nabucodonosor é uma história que, além de enfatizar o tom monoteísta da cosmovisão judaica (na qual o Deus Israel seria o único digno de ser adorado), a mensagem laica é latente na relação como Deus se manifesta ao rei babilônico. Deus está preocupado na forma como sua criatura com Ele se relaciona, sendo que a experiência de Nabucodonosor é reveladora da clara distinção entre o reino de Deus e o reino dos homens. Isso não quer dizer que Deus está alheio aos governos, pois do contrário, não seria Ele Soberano. Ao lermos o texto do antigo testamento à luz dos evangelhos e das cartas paulíneas, notamos que o maior projeto do Deus (que antes era identificado tribalmente como Deus de Israel) é o de reconciliar a sua criatura com Ele, tornando-se, em Cristo, Deus para todos os povos, o que justifica, pois, a chamada nova aliança, abrangente e universal.

Inclusive, a interpretação que Jesus dá acerca da responsabilidade no pagamento de tributos ao poder constituído se coaduna com essa linha divisória entre religião e poder político.

A partir de então, a história da humanidade, sobretudo a estudada no mundo ocidental europeu, ora mantém forte proximidade entre poder e religião, ora demonstra ruptura e distanciamento desses sistemas, mostrando uma interminável e perigosa sanha religiosa com as estruturas de poder da sociedade.


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